Trago este artigo da escritora italiana Michela Murgia
retratando o contexto da violência contra a mulher. A realidade na Itália é muito parecida com a brasileira.
Feminicídio é uma palavra que há apenas dez anos na Itália ninguém falava fora dos campos do ativismo contra a violência contra as mulheres. "Não precisa, assassinato inclui tudo" foi a resposta mais popular ao tentar deixar claro que mulheres mortas em dinâmicas de relacionamento tóxicas eram um fenômeno que nada tinha a ver com aquelas que morreram de crimes comuns, também porque, enquanto estas últimas diminuiu de ano para ano, as mulheres mortas por possessividade permaneceram numericamente estáveis.
O motivo da resistência das forças políticas e da mídia em usar uma palavra específica era compreensível: aceitar nomear o fenômeno de maneira diferente significava ter que lidar com ele com leis e linguagens específicas que iam até a raiz cultural do problema. Demorou uma década de mulheres que morreram nas mãos de maridos e ex-maridos, companheiros e ex-companheiros, irmãos, pais, namorados partiram ou nunca quiseram perceber que o assunto exigia uma abordagem direcionada. No entanto, o que essa abordagem deve ser ainda está sendo discutido.
Nos últimos anos, a lei de segurança tem
prevalecido, com leis específicas que intervêm apenas quando a violência se
manifesta de forma física ou persecutória. No centro dessa visão está o
assassino ou o perseguidor e isso significa que, quando o estado começa a lidar
com eles, a mulher já se tornou uma vítima. Por outro lado, nenhuma ou muito
poucas são as ações empreendidas para desarmar a cultura masculina e patriarcal
de base, aquela que leva os homens a considerar as mulheres sua propriedade e
as mulheres a trocá-la por amor. Atuar na educação de meninos e meninas - única
política verdadeiramente revolucionária - entraria de fato em conflito mais ou
menos aberto com o modelo sociocultural de muitas famílias italianas, ainda
construído em torno da atribuição dos papéis patriarcais de gênero que estão no
discriminação de base que leva à violência.
Mas lidar com a violência e não com a discriminação sempre significa chegar tarde demais. Por isso, nos locais de combate à violência contra as mulheres, o termo feminicídio não define apenas a morte, mas também a mortificação da mulher. A morte física só é possível quando a mortificação civil já foi permitida, ou seja, todas as negações da dignidade física, mental e moral dirigidas às mulheres solteiras enquanto tais e a todas as mulheres em sua filiação de gênero.
Nessa perspectiva, o feminicídio também pode ser
definido como a morte profissional da mulher por meio da negação de salários
iguais e perspectivas de crescimento. O feminicídio é a ausência de uma
perspectiva de gênero na prática médica, o que faz com que as mulheres morram
mais por falta de protocolos direcionados ao seu corpo, por preconceitos que
levam a subestimar sua dor ou por falta de informação sobre seus sintomas.
Feminicídio é a quantidade de renúncias trabalhistas vinculadas à gravidez e ao
nascimento de filhos e nesse sentido também um Estado aparece como feminicídio
que não atua no sentido de remover obstáculos à plena realização da mulher -
como estabelecido constitucionalmente - mas faz campanhas de responsabilização
no pele de quem, diante dos entraves socioeconômicos, opta por não gerar ou
fazê-lo após atingir uma estabilidade laboral cada vez mais tardia.
O juízo estético e moral sobre o corpo e as escolhas das mulheres é também feminicídio, que condiciona a qualidade de vida de todas nós, mas sobretudo das mais jovens e frágeis. O feminicídio, antes e mais de uma morte, é um processo de negação e controle. "Eu vou te matar" é sua conclusão e se torna mais uma ameaça apenas quando todas as outras palavras e ações já foram postas em prática. É por isso que o nascimento de um observatório específico dentro de um órgão de informação é um passo importante para assumir o controle do feminicídio como fenômeno cultural.
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