Por Rafael Jácome
Em
setembro de 1998 numa entrevista feita ao frei Leonardo Boff, no qual os entrevistadores Marina Amaral, Frei Betto,
Sérgio Pinto de Almeida, Ricardo Kotscho, Roberto Freire, Carlos Moraes, Chico
Vasconcellos, João Noro e Sérgio de Souza, entre tantas perguntas abordaram a
sua experiência com Darcy Ribeiro antes da sua morte. O diálogo estabelecido
entre os dois deixa claro o aspecto da dúvida na vida do homem e resume bem o
tema proposto:
P -
Como foi o momento com Darcy?
Leonardo Boff:
Digamos que foi a última grande conversa entre tantas que tive com o Darcy. Ele
disse: "Boff, quero ter uma conversa metafísica. Quero abordar a questão
da morte, o que vem depois da morte, e não tem nenhum interlocutor, entre os
meus amigos, que possa sustentar o discurso que eu quero". Fui lá uns
quinze dias antes de ele morrer, e ele se abriu: "Quero discutir com você
o tema da morte, porque estou enfrentando a morte, o meu último grande
desafio". Então me fez ler o prefácio do inédito Confissões (livro lançado
posteriormente), em que faz uma leitura de sua vida, não uma autobiografia, mas
fatos relevantes, luminosos da vida dele. E terminava o prefácio dizendo:
"Pena que a vida, tão carregada de lutas e fracassos, e vitórias, e
vontade de trabalhar, seja marcada por uma profunda desesperança, porque nós
voltamos, através da morte, ao pó cósmico, ao esquecimento, e ficamos na
memória, que é curta e só de algumas pessoas, e voltamos à diluição
cósmica". Então eu disse, ao terminar a leitura: "Darcy, acho que é
uma interpretação de quem vê de fora. É como você ver a borboleta, e ver o casulo.
Você pode chorar pelo casulo que foi deixado para trás e ver que ele morreu.
Mas você pode olhar a borboleta e dizer: "Não, ele libertou a borboleta, e
ela é a esperança de vida que está dentro do casulo”. (...) - Então eu
disse: "Darcy, no pensamento mais originário, contemporâneo, da biologia
molecular, no estilo Elya Prigogine, o caos é uma invenção da orbi, a morte é
uma invenção da vida, pra vida ser mais complexa, mais alta, e a tendência da
vida é buscar a sua perpetuação, a sua imortalidade. Darcy, deixa te dizer como
imagino a tua chegada, o teu grande encontro. Não vai ser com Deus Pai, porque
pra você Deus tem de ser Mãe, tem de ser mulher... (risos) Então tem de ser
Deusa. Imagino assim: que Deus, quando você chega lá em cima, vai dizer com os
braços abertos: ‘Darcy, como você custou pra chegar, eu estava com uma saudade
louca de você, finalmente você veio, você não queria vir, você teve de vir e
agora chegou’. E te abraça e te afaga em seu seio, e te leva de abraço em
abraço, de festa em festa...". E ele emendou: "De farra em
farra...". (risos) Eu digo: "Darcy, isso será pela eternidade
afora". Aí ele parou e me olhou de lado, assim como que interrogando, e
disse: "Como gostaria que fosse verdade! Minha mãe morreu cheia de fé e
morreu tranqüila, eu invejo você, que é um homem inteligente e de fé. Eu não
tenho fé. Como gostaria que fosse verdade". E aí lhe correu uma lágrima e
ele ficou silencioso, estremeceu e teve um acesso de diabetes, uma queda muito
grande de pressão e tiveram de levá-lo. E terminou assim a conversa. Eu ainda
disse antes de ele sair: "Darcy, não se preocupe com a fé, porque Deus não
se incomoda com a fé. Pelos critérios de Jesus, quem tem amor tem tudo. Então,
quando a gente chega na tarde da vida como você, quem atendeu os famintos como
você; crianças abandonadas como você; índios marginalizados como você; negros
que você defendeu; as mulheres oprimidas, desde o neolítico ninguém louvou
tanto a mulher quanto você – quem fez isso ganha tudo, porque optou pelos
últimos, por aqueles que estavam em necessidade. Quem fez isso tem o reino, tem
a eternidade, tem Deus. E você só fez isso". Ele respirou e disse:
"Puxa, mas tem de ser verdade". Mas não conseguia dar o passo, acho
que não importa dar o passo, acho que ele teve a coerência de vida, que foi
carregada de um grande sentido, de uma grande luta generosa”.
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